Li um artigo muito interessante nesta semana. Segundo um antigo texto egípcio (1200 d.C.) traduzido recentemente e atribuído ao pseudo-Cirilo de Jerusalém (400 d.C.), Jesus tinha o poder de mudar sua aparência; era um metamorfo. Segundo o apócrifo, foi justamente por esse motivo que Judas teria escolhido um ósculo como sinal combinado no episódio da traição. Considerando tal poder, o traidor necessitava beijar o Senhor para identificá-lo à escolta armada. Alega o manuscrito: “então os judeus disseram a Judas: como o prenderemos se ele não tem uma forma única, mas sua aparência muda? Algumas vezes é negro, outras é branco, outras é vermelho, algumas vezes tem a cor do trigo, algumas vezes é amarelo... algumas vezes é jovem, outras vezes é um homem velho...”.
Curioso. Esse texto em língua copta – uma espécie de grego modificado entre os séculos III e VI – foi traduzido pelo professor emérito Roelof van den Broek, que leciona História da Cristandade na Universidade Utrecht, uma das melhores na Holanda. O texto é um dos cinquenta e cinco manuscritos encontrados por aldeões numa escavação pelo destruído mosteiro São Miguel em 1910, no deserto perto de Al Hamuli, Egito. Aparentemente, durante o século X, os monges enterraram os manuscritos em uma banheira de pedra. Em dezembro de 1911 os textos foram adquiridos pelo magnata americano John Pierpont Morgan e hoje estão abrigados na Biblioteca e Museu Morgan, em Nova York.
Muitos cristãos têm especulado a possibilidade da veracidade no manuscrito copta e associado a metamorfose de Jesus ao beijo de Judas. Pergunte-se: será possível que o Senhor realmente mudava de forma? Cristo era metamorfo? Foi por isso que Judas o beijou? Não creio. Apesar da possibilidade do autor textual acreditar no fato – e, talvez, muitos de sua época – o mais provável é que o sinal combinado com os perseguidores objetivava impedir a fuga de Jesus ou o possível engano em prender alguém no lugar do Mestre. Além dos discípulos, a encosta do Monte das Oliveiras (com suas cavernas e sombras dos pomares de oliveiras) poderia estar repleta de peregrinos que costumavam passar a noite ali. Nesse sentido, entre o engano e a discrição, as declarações de Jesus – “sou eu” – no evangelho de João se encaixam perfeitamente (Jo 18.1-9).
Evidentemente, existem reconhecidos episódios bíblicos em que os discípulos não “reconheceram” Jesus fisicamente, principalmente após sua ressurreição: com dois discípulos rumo ao campo (Mc 16.12), no caminho de Emaús (Lc 24.15-16, 31), na praia pela madrugada (Jo 21.4) ou no sepulcro do Senhor (Jo 20.14-15). No entanto, tais referências não descrevem um Jesus metamorfo, mas ressuscitado; não um corpo “morfado”, mas glorificado. Inclusive, o texto citado de Marcos registra que Jesus manifestou-se em “outra forma”. Os termos gregos (heteros, morphe) apenas reforçam a natureza diferente do servo sofredor que ressuscitou, pois o Jesus ressurreto encontra-se em um estado novo (1 Co 15.44). Além do mais, o evento narrado em Lucas acentua que os discípulos não reconheceram o Mestre por um possível impedimento divino.
Se não podemos concordar com o Jesus metamorfo e o beijo como estratégia para identificá-lo, acordamos, pelo menos, no significado espiritual do ósculo dado. Veja: o beijo de Judas não era um mero sinal, marca ou senha. Sim, aquele gesto de saudação comum do Oriente exprimiu a manifestação máxima de seu pecado contumaz. O exegeta Fritz Rienecker resumiu bem esse ponto: “sob o símbolo do amor e da amizade, aconteceu a ação mais tenebrosa da história da humanidade. Com toda razão este beijo de Judas tornou-se, desde aquela hora, expressão do mais abominável fingimento”. O discípulo traiu, entregou seu Mestre.
Então, por que Judas traiu Jesus com um beijo? Ora, porque esse foi o combinado: “ora, o traidor lhes tinha dado este sinal: Aquele a quem eu beijar, é esse; prendei-o” (Mt 26.48). E o combinado “saiu caro”: “o Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por intermédio de quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!” (Mt 26.24).
Rev. Ângelo Vieira da Silva